quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Não se pode deixar de falar nos enchidos de porco açorianos, que estou convencido que fariam cá grande sucesso se alguém resolvesse importá-los. Em primeiro lugar, nas minhas predilecções, a morcela. A pequena mala de viagem para as minhas curtas deslocações a Ponta Delgada vem sempre com uns quilos a mais, de morcelas e também de bolos lêvedos – de que vai adiante a receita. As morcelas açorianas, com destaque muito especial para as micaelenses, são uma especialidade sem rival no continente. Com a mesma base de sangue de porco e um refogado, são profusamente temperadas com malagueta e uma variedade de especiarias, nomeadamente canela, erva doce, pimenta preta, cravinho e noz moscada. Servem-se fritas (o ponto certo da fritura é uma arte do bom cozinheiro micaelense), com ovo estrelado e batatas fritas ou só com inhames cozidos. Hoje, até em bons restaurantes de Ponta Delgada, está na moda a morcela com ananás. Não vou nessa moda. O outro enchido notável é a linguiça, que é completamente diferente da continental, desde logo pela sua grossura, como a dos chouriços continentais. É muito rica de carnes e é temperada com muita malagueta, alho, colorau, vinho branco, limão galego e laranja.Todavia, dito tudo isto, é preciso notar que, como em quase todas as cozinhas, há três níveis diferentes na cozinha das ilhas. Em primeiro lugar de qualidade, a cozinha aristocrática. Refira-se, porém, que a aristocracia açoriana é de fidalgos menores, embora frequentemente muito ricos, numa sociedade historicamente muito assimétrica. Ainda hoje, em S. Miguel, ao ler os antigos contratos de foreiros, se pode vislumbrar a divisão da terra em grandes fatias, de costa a costa, distribuídas por meia dúzia de grandes proprietários. Mas isto não correspondia a títulos de nobreza. Até ao liberalismo, em que proliferaram as fornadas de títulos ("Foge, cão, que te fazem barão / Para onde, se me fazem visconde?"), o único titular açoriano, que eu saiba, era o conde de Vila Franca, descendente do segundo capitão do donatário, um Câmara da Madeira, de seu nome Rui, filho de João Gonçalves Zargo. Passaram a usar mais tarde o título de condes e depois marqueses da Ribeira Grande – com o palácio em Lisboa que é hoje a Escola Rainha D. Amélia, na Junqueira – para esquecer a triste história de um conde da Vila Franca, valido de D. João IV, condenado pela Inquisição pelo "nefando crime" de sodomia. As famílias dessa pequena aristocracia rural cultivavam uma cozinha de qualidade, com melhoria dos ingredientes e qualidade de confecção das receitas tradicionais e com um grande sentido de posse em relação ao património culinário familiar. Ao mesmo tempo, sendo pessoas viajadas, importavam muitas receitas da boa cozinha, principalmente francesa ou de hotel. Mas, no dia a dia, não descuravam a cozinha tradicional, em versão rica.A segunda cozinha é a burguesa, em que incluo a das famílias de camponeses endinheirados. É esta que hoje mais vulgarmente designamos como a cozinha tradicional açoriana. Abaixo, a cozinha do povo de pé descalço, secularmente de grande pobreza, mas também de grande nobreza, naquilo em que esta estava no homem e não dependia de alvará régio ou de herança de sangue. Era uma cozinha de açordas ou de sopa de couves, com feijão, batata, batata doce, abóbora, inhame e outros produtos da horta. Acrescentar-lhe algum toucinho ou torresmos de porco conservados em banha já era um luxo. As carnes ficavam só para os dias de festa.

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