quinta-feira, 17 de janeiro de 2008


Em conclusão, e como refiro adiante, exemplarmente, em relação à unidade e diversidade simultâneas do traço identificador açoriano de grande importância que é o culto do Espírito Santo, este tema, talvez já esmiuçado pelos especialistas, continua a ser para mim um mistério, mas muito importante porque vai ao fundo do problema da identidade açoriana. Ele foi teorizado por pessoas notáveis, como Nemésio e Natália Correia, mas as suas elaborações intuitivas não satisfazem a minha necessidade de racionalização desse sentimento profundo, acentuado com o passar dos anos, que é o de me sentir cada vez mais açoriano, de forma indefinível. Mas também, porque cada vez mais açoriano, cada vez mais genuinamente português.Dando por findo este devaneio, meio histórico meio filosófico, mas de amador, voltemos à cozinha das ilhas (que me desculpem os meus amigos madeirenses, mas para mim as ilhas são os Açores).Além do que já disse, saliento que é uma cozinha que difere da nossa cozinha continental do litoral, que claramente privilegia o peixe. A cozinha açoriana é muito uma cozinha de carne, e também de capoeira. É de estranhar em ilhas, perdidas entre tanto mar. Mas a costa alcantilada das ilhas vulcânicas não propicia bons portos de pesca. Apesar do excelente peixe que aí se pesca, muitas vezes sem comparação de qualidade com o disponível no continente (com destaque para o carapau, a garoupa, a abrótea, o cherne, o atum albacora ou a bicuda/barracuda, e também o marisco), o açoriano, particularmente o micaelense, esteve sempre mais voltado para a terra do que para o mar. Sobre essas quase duas culturas antagónicas, Armando Côrtes Rodrigues, poeta micaelense de grande mérito e membro na juventude do grupo do Orfeu, escreveu uma notável peça de teatro, "Quando o mar galgou a terra", de um enorme dramatismo telúrico, hoje injustamente esquecida.Outro aspecto típico, em especial em S. Miguel e provavelmente relacionado com a navegação africana, com passagem obrigatória nos Açores na volta da Guiné, é o uso ubíquo da malagueta, ou pimenta da terra, com origens nas costas da Guiné e do Benim (a nossa pimenta em grão, preta ou branca, ainda é chamada pelos mais velhos como pimenta do reino, tal como também se diz ainda no Brasil). Uma outra especiaria essencial na cozinha micaelense, e também das outras ilhas, é a açafroa (designação micaelense), também chamada noutras ilhas como açaflor. São os estames do açafrão, típicos da cozinha meridional espanhola, de que também temos exemplos certos de colonização. Hoje é uma preciosidade de alto valor, o que justifica o preço das "paellas" valencianas genuínas.A outra tónica da cozinha açoriana, comum a todas as ilhas, é o uso variado e imaginativo de especiarias. A pimenta preta, o cravinho, a pimenta da Jamaica, a canela, os cominhos, a noz moscada, a erva doce, entram na culinária açoriana a um grau muito maior do que no continente. Talvez isto tenha a ver com a rota das Índias. A passagem pelos Açores era obrigatória, na volta de largo no regresso. Será que os capitães das esquadras trocavam especiarias por produtos frescos das ilhas? Os historiadores que o digam.

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